A Chávena de Humanidade


O Cháismo é um culto baseado na adoração do que é belo entre os factos sórdidos da existência diária. (...) É uma tentativa terna de atingir algo possível nesta coisa impossível a que chamamos vida.

El teísmo es un culto basado en la adoración de lo que es bello entre los hechos sórdidos de la existencia diaria. (...) Es un intento tierno de alcanzar algo posible en esta cosa imposible a la que llamamos vida.

Kakuzo Okakura

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

nudez

ritmo. bocas sem febre ou hálito. na pulsão do já não é mais o que foi. cresce a cada ramo a árvore dos adeuses interiores, as despedidas dos vestidos velhos que não mais servem ao presente, a nudez despretenciosa que nos acaricia os braços, os ombros. ausentes dos espelhos, a queda ao interior para procurar a génese, a explosão do que esquecemos, o que nos habita caladamente o fole, o pulso dos olhos, a procura. como não te inclino assim tu não me arrumas palavras confusas. nada é mais verdade que o silêncio dos passos e as mãos. é preciso mexer-se pelas horas, pelos espaços mudos onde somos, a distância que nos faz guardar palavras grandes porque os silêncios falam numa língua de pássaros migradores e nós, entretanto, não existimos além da maré e o vento.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

não é preciso

transformar. ser o engenho da semente, o que em mim se guarda rega apenas os campos mais escondidos da floresta. regar-me o ventre, neve, leve gota de vida sobre as marés dos sonhos e o amanhã. não te procuro porque sou ao vento, e tu és um entardecer que começa. somos gente, sempre seguimos na direção de um horizonte. há um mesmo sol para todos, para as minhas sandálias gastas e o teu amanhecer florido. mesmo em diferentes árvores, mesmo no teu cabelo de cipós e água queria ser pelos contornos dos ombros uma abelha, ou talvez uma artista de circo, ou talvez uma libélula num nenúfar. não é preciso. mas o caminho é tão bom, quando é contigo.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

atrás da coelha branca

atrás da coelha branca correm os homens, as pernas nuas, os segredos mal guardados. atrás da luz correm as libélulas de asas mates. são os acabamentos da aparência, os gestos vácuos da linguagem calada, escondida, faminta. fala tanto um silêncio como uma palavra alta ou comprida, e é preciso saber interpretar os códigos do ontem que os outros carregam como fardos, uníssonos como camaradas que gritam o mote do que já não é, o cântico de um passado que não lhes pertence, da miragem construída na defesa de outrem, de ontem, e feita nossa por puro erro, por pura excentricidade. uma pedra é igual a um coelho branco; o que muda é quem os persegue.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

pá e picareta



sonhos pequenos como pães. mastigamos cada pequena conversa. caímos pela borda do ontem, uma vez e outra. mas não, não eu. não nós. sempre houve, haverá sempre rótulos, rostos, rotos. é o tempo, os calcanhares dos deuses do riso, das avelãs que comemos um dezembro qualquer sem ter noção da proximidade do solstício. todos descemos pelo tronco vazio, todos atravessamos o espelho, todos nos olhamos simetricamente contrários ao que somos, é assim o jogo da vida, a partida que nos prega cada noite o eu antes de descer ao inferno para o atravessar a caminho do céu. por isso é preciso cavar, cavar sem parar nos corredores do desejo, da lonjura, no fogo que nos afasta dos outros. nada nos é mais preciso que a pá e a picareta, as mãos calejadas e o rosto da humildade vestido a custo dia a dia, hora a hora, minuto a minuto.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

brisa

a sina de babel. o empenho nas veias juntas pelo nó dos tempos idos, o regresso ao que esquecemos ser. folhas que já foram sangue ou rio, sopro da vida, respiração do templo que habitamos nos entrefolhos das glândulas caladas. é tudo uma treta do ontem, do amanhã, dos sangues afastados, as correntes que nos atam aos ancestros. babel que foge árvore acima à procura da base, os tempos antes da erupção dos eus, o que nos afasta, o que nos faz filhos de diferentes e afastadas mães, pesos carregados por séculos antes da decisão de fausto, cavar e cavar até atingir o último degrau da cave onde se esconde a verdade, a brisa que nos atravessa à noite, quando os corpos dormem esquecidos da torre que os esmaga, e somos livres.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

blocos

veias como rios pelas mãos enquanto fazemos parte da dança universal, arrastando os troncos das trovoadas velhas rio abaixo em direção à queda da disolução última. olhos nos olhos do ontem, somos eco da palavra pronunciada antes do início. cordas da mesma orquestra maquinal seguindo o ritmo do maestro do invisível. deixamo-nos encantar com o prestidigitador que pelos bicos dos sonhos nos dirige à casa do céu enquanto nos demoramos nas convulsões da síndrome de estocolmo. trabalhamos desde o amanhã e sentados à mesa do passado lutamos contra o nosso livre arbítrio, a nossa vida, o nosso futuro livre de correntes, os nossos tornozelos soltos e dispostos para a fresca correnteza da verdade e o silêncio. vagamos pelos caminhos do regresso, perdemo-nos em florestas conhecidas. devíamos ser penugem, somos blocos.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

caçar

volátil é a carga da palavra como fundo é o olhar dos corvos ou as gazelas. caminham inseguros os pés do intruso na floresta, tornam-se pedras longas os desejos que aninham no peito do caçador. quantos de nós saímos a caçar sem dar por nada. quantos de nós fazemos da palavra uma fisga para ganhar olhos ou ouvidos distraídos. quantos de nós nos levantamos de costas aos nossos atos, calamos os alvos, enfeitamos os caminhos com curvas inúteis. aquele que segue sempre em frente bate com uma rocha ou uma faia majestosa. aquele que se encontra deitado no chão sente a vida no sangue, na areia que bate na cara e lembra que somos feitos de quedas e renascenças, de cinzas e folhas verdes. de húmus, ossos e correntes.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

no encalço

Rumam cavalos à base da montanha. Desata-se a poeira do ontem, nada nos serve para ver ao longe. Nada também nos afasta da verdade onde nos deitamos: molho de costumes armadas em carácter. Por vezes somos o centro da Terra, por vezes somos para além de nuvem. Há em mim uma fome de estrelas: caí do azul e a ele regresso cada noite. Durante o dia, o cavalo que sou ruma à base da montanha, bate-se com chuva, com areia, com rios, com urzes. Com as próprias patas. Nunca lho disse, mas o cavalo que sou ruma a uma montanha que não existe e no entanto deve ser perseguida. É no encalço dela que rebentam os sonhos nas margens do caminho, ora uma orquídea, ora um lagarto, ora uma pedra ao sol.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

sobreviva

Sabes, poeta, pelo que das palavras mana, que houve desencontros tão naturais quanto os que há entre as rochas e as marés.

O tempo não existe e ainda assim é mágico, porque tudo ajuda a apreender.

As distâncias interiores nem sempre ultrapassam as das vontades. São profundas, moram em frequências paralelas. Raramente, tocam-se. Raramente sobrevivem.

Vivemos arrastados pelo ontem, perseguidos por passados que tudo tornam ora nuvem, ora pedra.

Precisávamos de um presente e tantas vezes fazemos a vida do outrora. 

O lençóis eram lilás, flores, recém comprados para receber o amor. As intenções também.

Por isso, pela honra de ter atravessado o jardim dos deuses da palavra, sobrevivamos nos resgates bravos da vida, sobreviva a criação, o branco futuro das noites livres, a convicção sagrada da palavra que flui nas veias.

Sobreviva a visão limpa e a leveza, o sorriso ao olhar para trás e compreender os nossos erros, as nossas fraquezas, as da maré que sobe e desce, as da rocha que ainda não é praia.

Sobreviva o olhar limpo, sobreviva a poesia.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

acontece

velhos blocos de sais estagnados. fracas folhas em queda sobre os ombros do verão. acontece que para criar um grão de areia foram precisos milénios, e nós sacudimo-lo no duche sem dar por nada. acontece que os nossos ossos foram também moléculas aos trambolhões no fundo do rio ou na asa de uma águia no cimo da montanha. acontece pensarmos que somos donos de qualquer coisa enquanto tudo nos possui sem descanso, a começar pela fome, o frio, o sangue, o eu. acontece achar que somos livres enquanto somos escravos da nação, da língua, da cultura, o pensamento. acontece que só é possível libertar-se deixando-se escoar pelo ralo da vida como uma areia em agosto ou um cabelo em setembro. acontece que só assim desaparecemos da nossa própria escravidão, do peso dos sonhos perdidos, da dor dos pés e a cor da pele ou dos olhos.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

erva-cidreira

não tenho disposição para os arames. cada vez que as palavras farpadas se tornam gomos nas nossas bocas, cada vez que nascem aos borbotões as espinhas fracas, as pequenas espetadas de cores e palavras perdidas na memória, cada vez, é amanhã. ou uma pinga de água no espelho, distorção prescindível do conhecido. pertence-nos o direito ao colo e a o hálito morno das manhãs de domingo, as letras ou notas com que acordamos para a beleza de estarmos vivos, para a escolha do olho antigo que às segundas esquecemos abrir. nada nos atinge a não ser o medo de estar vivos ou mortos, a tragédia de sermos os carrascos do próprio destino e nem dar por isso. é pelos caminhos da erva-cidreira que nos crescem as mãos e os jeitos de encontrar o outro no nevoeiro azul do oceano onde descansamos as almas à noite. é nos rios de tinta e lembranças sorridentes que acontece o tacto dos corações, a irmandade escondida, o incorpóreo abraço da procura, o nós.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

beiras

desrespeita as concordâncias de todo o género e em grande número, fica-se pelos ramos dos nomes, brama quando era para calar. enquanto os outros caminham com os pés no chão, trepa o tronco do antigamente sem pés nem mãos, numa viagem de lagarta que só procura pendurar-se de um pinheiro e adormecer. baloiça as pernas enquanto espera sentado no jardim para ver o acontecer das coisas grandes, como os papéis remoinhados num canto da rua. veste-se sem jeito e sai a correr para ver o poente, mas chega tarde por ter ficado a olhar para um bicho in-significante escondido na pedra onde tropeçou. por isso, a passagem do sol é-lhe um evento raro, por isso sonha e passa o tempo a falar dele. para além disso, sabe que o tempo é curvo e os jardins líquidos. obviamente, confunde as beiras com a praia e os cantos dos passeios onde vivem palavras húmus. obviamente, não presta para o agora, o poeta.