A Chávena de Humanidade


O Cháismo é um culto baseado na adoração do que é belo entre os factos sórdidos da existência diária. (...) É uma tentativa terna de atingir algo possível nesta coisa impossível a que chamamos vida.

El teísmo es un culto basado en la adoración de lo que es bello entre los hechos sórdidos de la existencia diaria. (...) Es un intento tierno de alcanzar algo posible en esta cosa imposible a la que llamamos vida.

Kakuzo Okakura

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

recomeçar

vale recomeçar. vale voltar as velas para o oriente e rumar para ocidente. nada nos detém a não ser o nosso coração sem compasso. uma estrela espera por cada coração que bate, e cada caminho é uma orquestra a tentar afinar os instrumentos do além nas correntes do rio que transita. olhamos para os outros na esperança de neles encontrar o melhor de nós; o espelho devolve-nos cada grama de miséria e cada grama de alegria. a nós cabe peneirar. gerir o amanhã depois da decepção. consumir a confiança alheia torna-nos uma bóia ao sabor de marés e trovoadas. mas é preciso viver assim, com o coração a sentir o risco do vento, o balançar das vontades feitas água. é preciso saber esperar sempre o melhor, falar alto e claro, seguir sempre em frente, construir o sonho, arriscar a verdade, agradecer as tempestades que nos forjam o espírito.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

escolhi

Eu escolhi. Escolhi amar entre as pedras, amar a caminho do rio. Amar sem corpos, sem ideias, sem i-deuses. Amar no meio das ervas secas. Escolhi regar desertos, plantar laranjas na savana. Subir a montanha plenamente ciente do peso do corpo e a fraqueza das mãos. Escolhi a montanha e o deserto, e o mar bravo. Escolhi semear, escolhi deixar o rio e atravessar o oceano.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

la noche

la noche
la blanca y mortecina niebla donde se incuban las piedras
a la hora de la roca hecha piel y venas

la noche
la hora en que las sílabas no cuentan
cuando somos dos cuerpos que dialogan callados a lo lejos
entre los grillos y las capas de deshielo

la noche
el regalo del silencio y la imagen
de un sintagma planeando tu nuca
tus dedos tu conciencia

la noche
y su gran ejército de dudas, su habla leve, viscosa, zurda,
sus codos ariscos envueltos en pena

la noche
que no llega y no nos deja
que nos grita de cerca en el cóncavo espacio donde guardamos
la pocas memorias que nos quedan

la noche y todos sus racimos de verdad
la espera de lobos y tortugas
los ojos abiertos como lunas nuevas




quarta-feira, 14 de agosto de 2013

quando era


quando eu era o vento. aquele dia. aquelas folhas em bronze entre os olhos que se escondiam. quando eu era o vento, e zunia os silêncios. e pela boca me saíam borbulhas de tempo onde passeávamos, como porquinhos-da-índia em rodas ilusórias. quando eu era o vento, e as borbulhas espocavam, e nunca mais havia passeio de sabão.

quando tu tomavas as noites como tobogã e nós ríamos porque a madrugada não demorava e o dia não nos esperava. quando havia palavras como amanhã que soavam a junto. quando tínhamos pernas confusas, mãos que equivocavam carícias em palavras e notas musicais. quando não eram precisos bilhetes porque as línguas estavam sempre prontas e adeus não era uma palavra plausível. 

quando eu era as noites com brisa e não acordávamos e os corpos não sabiam onde andavam. quando tu eras nuvem e guardavas a água para o verão porque nada havia senão luz e areia entre nós. quando todas as noites, sem descanso, dormíamos porque não havia nada a fazer senão encontrar-nos no sonho e passear versos entre as cores de Redon.

quando o algarve eram férias e as passas natal. quando tomávamos banho de verbo porque assim caíam mais claras as gotas do orvalho no atributo das nossas cópulas dormidas. quando éramos, e havia uma segunda para cavar, um domingo para colher.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

o teu lugar

entendo o teu lugar, acredita. eu entendo. brancas velas sobre o futuro. não temo o que há-de vir mas sim o que me leva dentro. claro como o céu brilha em mim um sol que produz as mais leves ondas onde embalar mãos cheias. longe mas em mim cresce um poço branco que pugna por sair e por vezes expulsa a lama que o mantinha entupido. procuro o leme que mantenha as águas limpas. sei que a lama inundou a mina noutro tempo por isso mergulho. vivo dentro da água, a vigiar os pontos fracos por onde os detritos escoam. para os manter afastados do espírito elementar onde adormece cada noite a sereia que levo dentro. entendo o teu lugar, acredita, eu entendo. e canto e cada nota é uma vontade de vencer pela beleza a aura breve em que os trovões se instalavam noutro tempo. entendo o teu lugar, acredita, eu entendo e luto sem trégua não por ti mas por mim. pelo que a mim me devo para saber ser o máximo expoente da potência aristotélica. porque só assim tu podes ganhar paz de alma e confiança. luto porque perdi o ser num buraco negro por instantes que se tornaram séculos na memória e navego assim entre duas trovoadas: a culpa e a luz. e no meio delas entendo o teu lugar, acredita, eu entendo.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Dias

Há dias em que poderíamos amar qualquer um. Um caracol que aparecesse na janela, uma pedra da praia, uma erva seca, um grilo mudo.

Há dias em que fosse alguém trazer-nos um livro e ficávamos a olhar como se fosse a anunciação ou o portador do nosso obituário.

Há dias em que tudo serve para deitar o corpo ao orvalho, às margens da sombra.

Há dias de lusco-fusco e velas de barco em vento fraco, à contra-mão do orgulho de ontem.

Há dias de magoar pessoas e não saber mais como procurar a praia.

Há dias em que os sais se tornam maquilhagem das feridas mas mesmo assim tomamos banho no mar e é bom.

Há dias em que há quatro sóis e dois satélites ao dispor dos nossos olhos, mas nós ficamos a olhar para a lua porque é tão redonda e escondida.


segunda-feira, 5 de agosto de 2013

a cor dos frutos

é o calor pela fímbria do peito. a mornura silenciosa. os corpos quietos de quem não precisa. ao longe continuam as casas, os rios, as paredes. entre nós há uma falésia breve mas milagrosamente alta que só o teu passo ágil pode ultrapassar. continuo deitada sobre as verdes idades em que nos encontramos. somos da mesma estrela. ou estação. a cor dos frutos que comemos nos iguala onde não se vê, por dentro dos corpos fracos. estico a mão e sei que o teu corpo está aí,

do outro lado dos oceanos.

sábado, 3 de agosto de 2013

Amar um homem

Amar um homem que chora
Que sabe que há fraquezas que nos tornam barcos estilhaçados nos rochedos do outrem
Um homem que bebe sal sentado a uma mesa pequena
De um café pequeno
De uma vila pequena

Um homem que por vezes deixa passar um comboio
Enquanto olha para os seus pés magoados
Amar um homem que sabe que há sofrimento gratuito no mundo
E que por vezes somos nós quem descerramos o punho calado sobre o outro
Porque olhamos para um pé e perdemos o sentido da mão e os olhos
E o coração abafado

Amar um homem que às vezes cala
Quando a rua pede um grito ou uma palavra de quem é viv'alma
Que mergulha no silêncio e a cada borbulha desmente o calor de ontem

Amar um homem que sabe usar as mãos para a beleza 

Embora por vezes desça ao inferno da quietude gélida

Amar um homem que fala por dentro como falam as paredes
Aos fantasmas e às viúvas

Amar um homem que ouve a campainha tocar mas dorme
Virado para um mar que acaba em mim

Mas não me chega por não ser mão dele que os barcos
Aportam ao peirau da minha cama

Amar um homem ao longe
Atravessados de água e falta de tacto
Um homem que contém
Sob as pedras do caráter uma ilha do tesouro
Com cores, pedras e um pirata que a guarda

E mesmo assim amar um homem
À hora do almoço e de madrugada